O Ministério da Infraestrutura enviou ao Congresso Nacional, um projeto de lei para implementar o programa BR do Mar que, supostamente, servirá para estimular a cabotagem brasileira. O PL 4199/2020 conta com a defesa efusiva do ministro Tarcísio de Freitas que optou pelo regime de urgência constitucional, para tramitação pela Câmara dos Deputados. Porém, o trâmite acelerado não contempla um ambiente para discussão e análise, tão necessário para um tema pouco conhecido, mas de grande importância estratégica para a nação.

A pressa evocada para a aprovação do BR do Mar preocupa e nos leva a refletir sobre quais resultados possíveis ocorrerão, sem que possamos debater a pauta. Neste sentido, vale resgatar um pouco da história da navegação por cabotagem, para nortear àqueles que desconhecem a trajetória deste modal de transporte, que cresce cerca de 12% ao ano, mas, mesmo com o custo operacional mais baixo, ainda corresponde a apenas 10% da movimentação de cargas do país.

Em uma rápida visita ao passado, nos deparamos com a década de 1990, quando foram estabelecidas as origens do mercado, como vemos hoje. Naquela época, as empresas nacionais cabotagem sucumbiram ante as dificuldades econômicas que assolaram o Brasil, principalmente, na década anterior. O golpe de misericórdia foi dado pela Emenda Constitucional N. 7/1995, que permitiu o capital estrangeiro nas empresas de navegação de cabotagem.

As poucas empresas que sobreviveram já tinham fortes vínculos no exterior. Os grandes grupos estrangeiros de transporte de contêineres assumiram o controle das maiores empresas no Brasil. Assim, passaram a usufruir de um mercado de bilhões de reais sem qualquer concorrência.

Para conter a voracidade do mercado estrangeiro e preservar a indústria naval, foi sancionada a Lei 9432/1997, o novo marco legal do setor. Entre as flexibilizações da lei, está o direito da Empresa Brasileira de Navegação de Cabotagem de afretar navio estrangeiro, do tipo e do tamanho (porte) adequados ao transporte pretendido, no caso de inexistência ou indisponibilidade do navio brasileiro. Todavia, essa norma tem sido desvirtuada a fim de beneficiar os grandes grupos estrangeiros, que estabeleceram seu modus operandi na insuficiência da frota brasileira para emprego irrestrito de suas frotas mantidas no exterior.

Assim, embora contenha norma equilibrada entre os agentes da atividade – embarcadores, indústria naval e empresas de navegação -, a lei foi criada em momento em que a cabotagem nacional já atendia aos interesses estrangeiros. O manto da regulação não foi o bastante para permitir que toda a lei produzisse seus totais efeitos e alcançasse seus objetivos de desenvolvimento das empresas de navegação brasileiras, reconstituição da frota nacional e fortalecimento da indústria naval.

A Antaq, por sua vez, como responsável por regulamentar a legislação do setor, especificamente no que tange ao afretamento de navio estrangeiro, nunca incorporou todas as hipóteses legais em suas resoluções. Ao contrário. A agência editou a Resolução Normativa 01/2015, limitando o afretamento àqueles casos e beneficiando exclusivamente os grandes grupos.

É o claro exemplo do afretamento de navio por tempo, modalidade que tem o custo operacional sensivelmente mais baixo do que as demais, inclusive da embarcação brasileira. Para beneficiar as poucas embarcações que os grandes grupos mantêm sob a bandeira brasileira, a Antaq nunca permitiu o afretamento na modalidade por tempo para navios de carga sólida, restringindo o mercado à preferência do pequeno grupo de grandes empresas que passou a controlá-lo, a partir do abuso da posição dominante, atentando contra a ordem econômica, por meio do manejo de “bloqueios”[1].

Como resultado, temos 95% do mercado da cabotagem nacional conduzido pelas subsidiárias estrangeiras. Essa configuração, derivada da resolução, impede a competitividade, o ingresso de novas empresas e proporciona o aumento do custo de insumos e mercadorias, atingindo o coração da economia, com o recrudescimento do custo-Brasil. Da mesma forma, o BR do Mar restaura tais práticas anticoncorrenciais e protege as multinacionais de qualquer concorrência efetiva, além de castigar as pequenas e médias empresas, que lutam por um mercado que fomente a concorrência e por uma agência reguladora eficiente e moralizada.

Para deter a concentração de mercado, é preciso estimular as empresas brasileiras de navegação. Mas, antes, devemos afastar a urgência do PL 4199/2020, e devolve-lo para o amplo debate.

*Fausto Pinato, deputado (PP-SP)

[1] Trata-se o Bloqueio, a forma que as empresas brasileiras de navegação têm para oferecer o seu navio brasileiro, no caso de consulta quanto a sua existência e disponibilidade, na forma do art. 9º, I da Lei 9.432/97.

O BR do Mar equipara as embarcações estrangeiras afretadas na forma do art. 5º do PL 4199/2020, às brasileiras, para fins de bloqueio (art. 11, III do PL 4199/2020).

 

Artigo publicado no Estadão

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